Hipótese foi apresentada por Ramalho Eanes: “Nós, os velhos, quando chegarmos ao hospital oferecemos o nosso ventilador.” Será possível?
A ideia, altruísta, foi levantada no início de abril pelo antigo Presidente da República, Ramalho Eanes, de 85 anos, deixando um apelo aos mais velhos: se Portugal passar por uma situação idêntica à vivida em Itália e Espanha, os mais idosos devem dar o exemplo e ceder os ventiladores ao homem “com mulher e filhos”.
À RTP, o ex-Chefe de Estado disse que “nós, os velhos, vamos ser os primeiros a dar o exemplo. Não saímos de casa, recorremos sistematicamente aos cuidados que nos são indicados e mais, quando chegarmos ao hospital, se for necessário oferecemos o nosso ventilador ao homem que tem mulher e filhos”.
Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética, explica à TSF que as palavras de Ramalho Eanes são um sinal de grande solidariedade e bondade, mas sofrem de um problema prático, apesar de ser possível a qualquer pessoa recusar um ventilador como qualquer outro tratamento médico.
Essa recusa pode acontecer no momento em que o doente é informado que vai passar à ventilação mecânica ou mesmo previamente, caso a pessoa tenha feito um testamento vital onde tenha escrito que não quer ser sujeita a esse tratamento.
O testamento vital, tal como a indicação, nessa mesma diretiva antecipada de vontade, de uma pessoa próxima que venha a tomar essa decisão em seu nome, é útil quando o doente está inconsciente e os médicos não sabem qual a vontade da pessoa.
Rui Nunes explica, contudo, que a ventilação assistida não é, por norma, sinal de fim de vida e na maioria dos casos os doentes recuperam.
Abdicar de um ventilador, usado em doenças infecciosas ou agudas como a Covid-19, será ficar em grande risco de vida e por norma o testamento vital prevê outro tipo de situações: doenças terminais em que a pessoa pretende evitar “tratamentos que para ela são fúteis, desnecessários, desproporcionados, algo que não se aplica à ventilação” que tenta colmatar temporariamente uma função vital.
O problema da hipótese levantada por Ramalho Eanes, explica Rui Nunes que sublinha a solidariedade do gesto, não está na recusa do tratamento mas sim no destino do ventilador recusado pelo eventual doente idoso que quer deixar esse instrumento da medicina para alguém mais novo, com mulher e filhos.
“O modo como o sistema de saúde está organizado não permite que sejam os doentes a escolher quem são os doentes que vão usufruir de um ventilador ou de um transplante”, refere o presidente da Associação Portuguesa de Bioética.
“O ato é altruísta, mas o que aconteceria é o direito de um doente recusar um tratamento e depois esse equipamento seria alocado aos doentes de acordo com critérios éticos de priorização” como “os benefícios que teria cada doente, anos de vida com qualidade e não um limite etário que é sempre arbitrário”, sendo preciso “olhar para os doentes como um todo”, afirma Rui Nunes.
A decisão final de quem receberia o ventilador ficaria nas mãos dos médicos e “poderá ser qualquer pessoa, inclusivamente uma pessoa mais velha”, conclui o especialista em Bioética, que acredita que Portugal não chegará aos casos de Itália ou Espanha com falta de ventiladores para todos, num cenário que parece reforçado com os números de infeções das últimas semanas.